A trama acompanha Tereza, uma mulher de 77 anos convocada pelo governo a se mudar para uma colônia compulsória destinada a idosos. O argumento oficial é o de oferecer conforto nos “últimos anos de vida”, enquanto a juventude segue produzindo sem se preocupar com os mais velhos. Antes de aceitar esse exílio, Tereza decide embarcar em uma viagem pelos rios amazônicos, guiada pelo desejo de realizar um último sonho — um gesto simples, mas capaz de transformar sua existência.
Mascaro escolhe aqui um caminho arriscado e poderoso: trabalhar com a distopia, gênero raro no cinema brasileiro, mas que se encaixa como luva para falar de nosso presente. Sua escolha estética é clara: em vez de imaginar um futuro distante, ele projeta um “quase agora”, em que a crueldade institucional se mistura à paisagem natural. A distopia, portanto, não vem de naves espaciais ou cidades tecnológicas, mas da burocracia, da negligência e da forma como tratamos aqueles que já não estão na linha de frente da economia.
Esse ponto ressoa com a realidade. Dados recentes apontam que, em 2022, cerca de 160 mil idosos viviam em casas de repouso no Brasil — número maior que em censos anteriores e que deve crescer continuamente. A questão não é apenas logística, mas ética: até que ponto estamos, como sociedade, delegando a terceiros aquilo que antes era visto como responsabilidade familiar? E mais: o que acontece quando a velhice é percebida não como tempo de autonomia, mas como justificativa para restringir escolhas?
É nesse dilema que Tereza se torna mais que uma personagem: ela é um corpo político. Sua recusa em aceitar a ordem estatal traduz o desejo de não apenas viver, mas existir com dignidade. A fotografia natural da Amazônia reforça esse embate — rios, árvores e luz se tornam símbolos de resistência, enquanto o confinamento imposto ecoa como uma prisão disfarçada de cuidado.
Mascaro também brinca com imagens-espelho ao longo do filme. No frigorífico onde Tereza trabalhou, vemos jacarés pequenos sendo abatidos e transformados em produto, em contraste com o jacaré adulto que, no desfecho, surge livre nas águas. Essa metáfora percorre a narrativa: estamos diante de uma reflexão sobre quem é mantido preso e quem consegue, apesar de tudo, escapar.
O brilho maior, entretanto, pertence a Denise Weinberg. Sua interpretação é ao mesmo tempo delicada e feroz. A atriz carrega Tereza com uma força silenciosa que transborda em cada gesto, lembrando ao público que o cinema brasileiro ainda oferece pouco espaço para veteranos — justamente aqueles que poderiam trazer camadas de experiência e densidade raríssimas. Não por acaso, sua performance foi aclamada em Berlim, onde o filme conquistou o Urso de Prata do Grande Prêmio do Júri.
“O Último Azul” já levou mais de 56 mil espectadores aos cinemas nacionais, feito considerável para um drama autoral. O sucesso não vem só do prestígio em festivais, mas da urgência do tema: o filme cutuca feridas abertas sobre envelhecimento, abandono e etarismo.
No fim das contas, Mascaro não oferece respostas fáceis. Ele propõe uma pergunta incômoda: o que significa envelhecer em um país que ainda não aprendeu a valorizar o tempo vivido?. Ao colocar essa questão no centro da tela, “O Último Azul” se impõe como um dos trabalhos mais necessários e contundentes do cinema brasileiro recente.