Um filme onde o divã é território político e o cabelo, símbolo de libertação.
Tornou-se clichê — especialmente aqui no site — dizer que filmes baseados em fatos reais têm o poder de potencializar histórias. Ainda assim, mesmo sendo um clichê que gosto de repetir, essa afirmativa está longe de ser uma inverdade. O cinema amplifica narrativas que muitas vezes permanecem invisíveis ou restritas a grupos sociais específicos. É exatamente o caso de Virgínia e Adelaide, que chega aos cinemas nacionais no dia 8 de maio.
Virgínia Bicudo, mulher negra, professora universitária e pioneira nos estudos sobre o racismo no Brasil, torna-se a primeira paciente de Adelaide Koch, mulher judia, médica e psicanalista que foge da Alemanha nazista para São Paulo. Juntas, ajudam a fundar a psicanálise no país e abrem caminho para as que vieram depois. O filme é dirigido por Yasmin Thayná e Jorge Furtado e conta com Gabriela Correa e Sophie Charlotte nos papéis principais.
O longa, centrado exclusivamente nas duas atrizes, adota um formato que mescla ficção e documentário. A montagem alterna entre sessões de análise entre Adelaide e Virgínia e monólogos em tom quase documental, nos quais ambas as personagens expõem suas histórias e refletem sobre temas como identidade, pertencimento e memória. Essa construção pode soar incomum ao espectador acostumado com narrativas tradicionais, mas o formato contribui para o dinamismo da trama e enriquece sua dimensão reflexiva.
Apesar de se concentrar nas duas personagens em tela, o filme vai muito além de um simples diálogo. O roteiro — por vezes sutil, por vezes direto — levanta questões urgentes. Em um dos momentos mais potentes, Virgínia conta que sua avó foi uma mulher escravizada e seu pai nasceu livre. A cena se passa em 1937, ou seja, apenas 49 anos após a assinatura da Lei Áurea. Adelaide, nascida na Alemanha, demonstra certa perplexidade. É um contraste revelador: para ela, a escravidão é uma ideia distante; para Virgínia, é um passado recente que ainda molda seu presente. São nesses detalhes que o filme se fortalece, revelando como a história do Brasil permanece entranhada no cotidiano das pessoas.
Outro ponto interessante é como o longa costura semelhanças entre essas duas mulheres, aparentemente tão distintas. Ambas carregam nas costas o peso do preconceito, da fuga e da resistência. A opressão as marcou de maneiras diferentes, mas o impacto psicológico é profundo em ambas.
As sessões de análise são um espetáculo à parte. Como se fôssemos estagiários da psicanálise, somos convidados a acompanhar as sessões íntimas entre Virgínia e Adelaide. O que parece simples — alguém falando e outro ouvindo —, na verdade, revela a complexidade da escuta analítica. A condução da terapeuta está nos detalhes, nas perguntas sutis que exploram o que foi dito e, principalmente, o que foi calado.
E é aqui que o idioma exerce papel fundamental. O alemão, ao contrário do português, possui uma riqueza semântica precisa. Verbos como wollen (querer com força e decisão) e möchten (um querer leve e educado) exemplificam como o idioma consegue nuances mais específicas do desejo. Enquanto no Brasil usamos “querer” para tudo — querer um sorvete ou querer mudar de vida —, o alemão exige precisão. Adelaide, mesmo ainda aprendendo o português, utiliza a bagagem de sua língua nativa para compreender, com agudeza, o que Virgínia sente, mesmo quando ela mesma ainda não tem clareza.
Um dos aspectos mais sutis e, ao mesmo tempo, mais reveladores do filme está no cabelo de Virgínia. É ele quem dá as pistas mais claras sobre seu processo interno de aceitação racial. Ao longo da narrativa, percebemos como ela tenta se enquadrar em padrões brancos de aparência, negando traços que a identificam como mulher negra. Mas é no final — e esse é um dos momentos mais simbólicos do longa — que ela surge com um black power assumido. Não é apenas uma mudança estética, é uma afirmação: ali está uma mulher que finalmente se reconhece e se aceita como negra. É nesse gesto que a psicanálise, a identidade e a história se entrelaçam com mais força.
Virgínia e Adelaide é um filme extremamente competente em demonstrar, com sensibilidade e precisão, como o inconsciente carrega marcas sociais. Profissionais da área da psicanálise vão se ver representados e provocados — talvez até revisitarem suas próprias jornadas de formação. Quem já passou por terapia certamente reconhecerá ali os pequenos gestos que carregam grandes revelações.
Nota: 7/10