A Longa Marcha | Crítica



Mais do que entretenimento, A Longa Marcha – Caminhe ou Morra se consolida como um dos filmes mais poderosos do ano — uma experiência que mistura reflexão, tensão e espetáculo em estado bruto


Adaptado do livro de Stephen King (sob o pseudônimo Richard Bachman), A Longa Marcha – Caminhe ou Morra estreia em 18 de setembro nos cinemas brasileiros. Dirigido por Francis Lawrence (Jogos Vorazes) e roteirizado por JT Mollner (Strange Darling), o longa parte de uma premissa brutal: cem jovens caminham sem parar em uma competição na qual apenas um sobreviverá.

O que poderia facilmente se tornar repetitivo, Lawrence transforma em tensão constante. A narrativa não perde ritmo, sustentada tanto pela direção quanto pelo roteiro, que extraem mais do que choque: o filme trabalha simbolismos, críticas sociais e reflexões profundas.

    Entre os temas, destacam-se os traumas de guerra (afinal, o livro foi escrito em plena Guerra do Vietnã), mas também amizade, solidariedade e, sobretudo, a normalização da violência como espetáculo. É nesse ponto que a obra dialoga de forma inquietante com a cultura contemporânea dos reality shows.

    Assim como nos programas Big Brother Brasil ou A Fazenda, há todo um ritual de exposição, eliminação e voyeurismo. A diferença é que, na ficção, a punição é a morte explícita; na realidade, trata-se de tortura psicológica e humilhação pública. Mas em ambos os casos, o público se torna cúmplice, assistindo ao sofrimento como entretenimento.

    Essa crítica encontra eco no livro Rituais de Sofrimento, da socióloga Silvia Viana (Boitempo). Para ela, reality shows não são apenas diversão, mas mecanismos de dominação onde a eliminação e o embate feroz são celebrados. O mesmo se vê em A Longa Marcha: o público dentro da trama já se acostumou às execuções, assim como nós, na vida real, naturalizamos as violências televisivas. Como diz McVries em certo momento: “Espero que isso fique mais fácil”. Ao que Garraty responde: “É disso que eu tenho medo”.

    A força do filme está aí: provocar a reflexão de que o espetáculo da dor, seja fictício ou real, só existe porque há plateia disposta a consumi-lo. Mas o longa vai além disso. Ao vermos apenas esses jovens adultos em um marchar que parece não ter fim, é impossível não associar a formação deles a um pelotão sendo enviado ao campo de batalha. Os jovens recebem suas cartas de convocação, se despedem de suas famílias e partem em sua jornada rumo a nada.

    Assim como na vida real, quando jovens são recrutados para servir em guerras. Quem fica, apenas acompanha e torce por seus soldados, sem questionar o recrutamento. Muitos acreditam que estão servindo ao país, mas, na verdade, são empurrados a uma causa vazia. Esse paralelo se intensifica na figura do major (Mark Hamill), que só aparece nos momentos fáceis: dorme, come bem, nunca está no campo de batalha. Do alto do seu pedestal, impõe sua autoridade sem jamais se expor como um verdadeiro guerreiro.

    Um outro destaque do longa, dentro de sua carga simbólica, está em uma cena poderosíssima: quando um jovem se suicida, a câmera corta para cavalos. Assim como sacrificamos um animal ferido para poupá-lo da dor, aqui o jovem encerra seu próprio sofrimento psicológico. O momento remete à obra literária They Shoot Horses, Don’t They? — conhecida no Brasil como A Noite dos Desesperados. Essa é apenas uma das muitas sutilezas em que a direção transforma a dor em metáfora, ampliando o alcance reflexivo da narrativa.

    A Longa Marcha – Caminhe ou Morra possui múltiplas camadas de leitura e poderia render um ensaio inteiro de interpretações. Mas o essencial é que Francis Lawrence entrega uma das experiências cinematográficas mais intensas e provocativas do ano. Com sua proposta ousada de filmar corpos em movimento constante, expostos a situações absurdas que só poderiam sair da mente de Stephen King, o longa se destaca como cinema puro: físico, sensorial e profundamente humano.

O evento cinematográfico do ano — Stephen King como você nunca viu, em uma jornada que vai tirar o fôlego do público.