Um dos gêneros mais revisitados pelo cinema brasileiro é o que trata da Ditadura Militar. Filmes como Zuzu Angel, O Que É Isso, Companheiro?, Cabra Cega, Batismo de Sangue e Lacerda são exemplos de produções que buscaram iluminar esse período sombrio da história nacional. Em geral, essas obras seguem um mesmo eixo de representação: o olhar da classe média urbana e da elite intelectual. É uma perspectiva legítima, mas também limitada.
O caso mais recente é Ainda Estou Aqui, indicado ao Oscar e aclamado em diversos festivais internacionais. O filme, embora de inegável mérito estético e político, repete um padrão recorrente. Como já observou o pesquisador Chavoso da USP, há uma carência de narrativas que contemplem o ponto de vista popular, a experiência da ditadura vivida por quem estava nas fábricas, nas favelas, no campo, ou nos rincões do país. O cinema, ao focar quase sempre em artistas, jornalistas e intelectuais, oferece um retrato parcial da repressão, que se distancia das dores da maioria que também foi vítima do regime, direta ou indiretamente.
Essa limitação acaba moldando uma memória seletiva, como se a ditadura tivesse sido um drama vivido apenas por quem escrevia sobre ela. O cinema nacional, ao tentar revisitar o passado, ainda falha em incluir as vozes que o regime mais silenciou. Há, portanto, um vácuo de representação, e talvez seja nesse espaço que o novo filme de Kleber Mendonça busca se inserir.
O Agente Secreto, estrelado por Wagner Moura e com estreia marcada para 6 de novembro, se passa durante a Ditadura Militar e propõe um olhar diferente sobre o período. Em vez de retratar as prisões, torturas e a repressão institucional que já conhecemos, o diretor desloca o foco para as engrenagens invisíveis do poder, para os abusos que o regime permitia, mesmo quando não os executava diretamente.
Mendonça não está interessado apenas na face oficial da ditadura, mas nas suas sombras. Mostra como empresários, políticos e figuras de influência se beneficiavam do sistema autoritário, construindo fortunas, destruindo reputações e consolidando um poder que, em muitos casos, sobreviveu à própria transição democrática. Porque, embora hoje vivamos sob um Estado democrático de direito, as práticas da ditadura ainda atravessam nossa sociedade, o autoritarismo disfarçado, a impunidade dos poderosos e a continuidade das mesmas famílias e elites no comando do país.
A narrativa acompanha um professor universitário, vivido por Wagner Moura, que vê sua vida ser destruída após entrar em conflito com um empresário influente. Esse homem, movido pelo ego e pela ambição, usa seus contatos e privilégios para se vingar, contando com a complacência de um Estado que escolhe quem punir e quem proteger. É nesse contexto que o filme mostra como o poder econômico e político se misturam, criando um ambiente onde a justiça se torna uma conveniência, e não um princípio.
Há uma sequência que sintetiza essa crítica com precisão: o depoimento de uma madame, tratada com todas as regalias, mesmo sendo cúmplice da morte do filho de sua empregada doméstica. A semelhança com o caso real do menino Miguel, morto após cair do nono andar de um prédio no Recife, não parece acidental. A diferença é que, agora, a patroa foi condenada. Mas a cena reforça o quanto a desigualdade e o privilégio seguem definindo quem é culpado e quem é inocente.Mesmo não sendo baseado em fatos reais, O Agente Secreto soa verossímil porque o país retratado por Kleber Mendonça é reconhecível demais. Um Brasil em que o poder se recicla, as injustiças se repetem e o passado nunca é realmente superado. A ditadura, nesse sentido, não é apenas o cenário do filme, mas o espelho de um país que ainda vive sob seus reflexos.
Esse é o mérito maior da obra: não revisitar o passado como memória distante, mas revelá-lo como presença constante, como uma ferida que, sob a pele da democracia, ainda não cicatrizou.
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