As tradições de Gamogu – parte 1



As tradições de Gamogu – parte 1








Nossos ancestrais que viveram nas proximidades do rio Biongo Azul, nas agora distantes terras altas de Zuinga, fizeram uma longa jornada até cruzar o rio Yolo, abandonando Suávia e ganhando o árido continente de Kaatávia. A aridez que significaria o provável fim desse pequeno grupo pretérito, no entanto, foi, depois que aprendemos a dominar o fogo, o princípio da maior revolução de nossas vidas.


Como dependíamos extremamente da natureza, nossos pés estavam sempre em movimento. Cabia aos homens o trato direto com os animais através da caça e às mulheres o trato direto com as plantas e seus frutos. Acostumados com as florestas e campos de Suávia, na Zuinga, esse grupo ancestral encontrou extrema dificuldade em Kaatávia. Aqui os animais formam pequenos rebanhos, distantes uns dos outros, e as florestas que abundam em Zuinga tornam-se pequenas áreas verdades, ou pequenos grupos de árvores e arbustos esparsos.



Mas, como a inventividade é o que separou os gu´un do restante das criaturas que Un trouxe a vida em Dout, da diversidade surgiu a felicidade. Tentando e errando, nossos ancestrais conseguiram iniciar o processo de controle da natureza. Se, por um lado, no trato com os animais, o homem aprendeu a domesticá-los, por outro, a mulher soube escolher as melhores plantas e mimetizar o processo natural de semeadura.

A revolução estava no tempo economizado que nos permitiu poupar nossos pés e exercitar mais nossas mãos e cabeça. Deixamos de ser nômades e passamos a uma transição seminômade até finalmente fundarmos nosso primeiro assentamento permanente nomeado Zentiegu, que na língua gu´un original significa "gente escolhida". Toda aquela prova que passamos nos dava a certeza de que Un nos havia escolhido para prosperar.


Nesses cem anos de existência de Zentiegu a população cresceu consideravelmente e, hoje, pouco depois dos fatos narrados mais abaixo, a cidade abriga cerca de cinco mil almas.



O passado nos legou o matriarcado que de liderança inquestionável, como nos longínquos tempos de Deusra, mudou em forma pois éramos nômades ou seminômades e agora sedentários. O sedentarismo social plantou novas sementes. Sementes de discórdia que tendem a separar os gu´un cada vez mais.

A fogueira ardia intensamente. Boa parte da carne das pernas da mulher já estavam enegrecidas, em um estado onde não se podia distinguir entre o que era a madeira e o que era o corpo.


O cheiro de carne queimada tornava-se mais forte conforme as chamas tomavam conta do restante de seu corpo. Suas mãos que estiveram atadas ao poste de madeira agora estavam livres, uma vez que as chamas também atingiram a corda. No entanto, agora em carne viva eram totalmente inúteis, e certamente a dor que sentia e a nulidade de suas pernas, impediriam que se libertasse do castigo.

Mas, mesmo que pudesse sair; não desejava.


Estranhamente, como fizera no período de seu cárcere e julgamento, Jubyla preferiu o silêncio quando foi levada à fogueira.

Manteve-se sempre à mercê de seus acusadores e julgadores. E, agora, também de seus espectadores e algozes. Não de todos, mas de alguns, especiais espectadores que, desde o início, ansiavam por seu fim.

Observava a todos. Não escondia a dor. Talvez ninguém pudesse! Mesmo alguém obstinado como ela. Mas, a despeito da extrema dor que sentia, fazia questão de observar um a um. Principalmente aqueles que mais estavam interessados em certo desfecho daquele espetáculo.


- Veja como queima – disse Galdaô, o Rei de Zentiegu, indivíduo robusto, de poucas palavras, mas de presença marcante.

- Que queime o mais de pressa possível – respondeu Yakub, o chefe da tribo Jogaten, da mesma forma desprezível com que sempre tratou a velha mulher.

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