As tradições de Gamogu – parte 2

As tradições de Gamogu – parte 2
   Jubyla fora importante desde pequena. Filha da matriarca de Zentiegu. Herdeira da importância de suas ancestrais. No entanto, o tempo de sua vida fora um tempo diferente. Tempos de mudança; tempos das tradições de Gamogu.
  
Nos tempos das histórias de Pororos e Jamoros vivíamos como todas as outras criaturas em Dout; com medo. E o medo fez da nossa fé, puro reflexo das forças que nos cercavam; os “espíritos de Varlagaris” eram principalmente malignos e não havia tempo para discórdias. Os vivos comiam os mortos para que os mortos não comessem os vivos.
   Nos tempos de Boga e Yala, de que nos falaram nossas antigas matriarcas Jároce e Málera, entendíamos um pouco mais a natureza, os espíritos de Varlagaris que eram totalmente controladores de nossos destinos passaram a ser bons espíritos que cooperavam conosco, desde que estivéssemos dispostos a cooperar uns com os outros em busca de boas caças e de frutíferos bosques. Os vivos agora buscavam a cooperação para que seu mundo tivesse uma fronteira bem definida com o dos mortos.
   Nos tempos de Deusra e Bosje, os primeiros segredos de Dout nos foram revelados. Aprendemos a recriar o que antes apenas recolhíamos. Semear e colher transformou definitivamente nossa relação com o mundo dos mortos. A crença de que nós, os gu´un, seríamos capazes de fazer tudo ao nosso alcance e controlar nosso maior desafio, a morte, fez dos mitos de nossa fé algo cada vez mais sem sentido. Para alguns!
   Milhares de anos entre cada um desses três tempos trouxeram mudanças inquestionáveis. Agora os mitos antigos dizem pouco para a nova realidade que se apresenta.
   - Queime velha nojenta – disse Galdaôgu, filho de Galdaô e chefe da tribo Gibaloaten, robusto e de presença marcante como o pai, mas com pouca presteza para negociar acordos com as famílias de Zentiegu ou mesmo com as de sua tribo.
   Isso não é o correto. Pensou Gamo, o sábio mais respeitado de Zentiegu. Gamo era o espírito representante desses tempos confusos. Ao mesmo tempo em que guardava as tradições da primazia da mulher, cuja maior representante agora queimava, também era o baluarte dos melhores conselhos das novas tradições que agora surgiam. Gamo era o arauto silencioso dos novos tempos.
   - Ha, há, há! – Gargalhou Galdaôgu. Era a força de Bosje que agora dava a volta. Sua robustez só era superada pela de Galdaô.
   Como Galdaô e seu filho, aliás, como a maior parte dos filhos da tribo Gibaloaten, havia poucos em Zentiegu. Do alto de seu metro e meio, Galdaô apresentava as proporções mais perfeitas de nossa gente: as duas metades do corpo, divididas pela cintura, exatamente iguais em tamanho, ombros espessos e devidamente projetados para fora do tronco na medida de uma perna cada um, mãos chegando a metade da coxa, pés compridos e largos, o conjunto de costelas terminando devidamente em um abdome delgado apresentando a metade do comprimento do peitoral.
   - É do ventre da mulher que vem a vida – murmurou Gamo, despertando olhares de seus companheiros. Especialmente de Galdaôgu que tinha um ar sinistro de reprovação. Foi da sabedoria de nossas pretéritas mulheres que começamos a plantar, isso não está certo. Pensou, mais uma vez, o arauto silencioso dos novos tempos.
   As mulheres Gibaloaten também eram o símbolo da pureza gu´un, suas medidas eram as mesmas das dos homens, apenas sendo dois terços menores em volume e com um quadril ligeiramente mais largo. A mais perfeita representação do passado glorioso das descobridoras dos segredos da semeadura que, no princípio, era feita com um simples bastão, revolvendo rasamente a terra, expondo pouco de seus nutrientes. O suficiente somente para uma precária produção, mas que, sem sobra alguma de dúvidas, muito melhor que a simples coleta desorganizada nas florestas, bosques e campos.
   A domesticação de animais pesados permitiu que o preparo da terra para a semeadura pudesse ser feito com muito mais do que os simples bastões primitivos. Assim surgiram os primeiros arados de pedra polida, mais sofisticados, mais pesados, e mais capazes de expor os nutrientes mais profundos da terra.
   A importância alcança pelos animais de tração trouxe uma profunda modificação na estrutura social de nossa gente. Mas não no mesmo instante em que passaram a ser usados. Foi preciso um longo tempo.
   - Queime velha – disse Galdaô. - Nenhuma mulher jamais voltará a ousar questionar se os animais são meus ou não.

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