As tradições de Gamogu – parte 5


   Estavam todos lá! Conforme dizia a lei, os cinco chefes tribais seriam os acusadores, Jubyla falaria em causa própria, Gamo representaria o equilíbrio entre as partes e o rei seria o juiz. Mas a lei, pouco específica, dava margem para interpretações, nada dizia sobre o modo como todo o juízo seria feito. – Em praça pública, meu rei? – Inquiriu Balgan, o chefe do conselho das cinco tribos, com olhar de quem pergunta desejando que a resposta fosse uma só.



   - Aqui no salão, somente com os mencionados na lei de meu saudoso pai-rei, não precisamos de mais nada, estamos amparados pelas sagradas letras de nosso pretérito e magnífico rei Gayalo – respondeu Galdaô peremptoriamente.
   Então, conforme a interpretação real, o teatro teve lugar no salão real, com Galdaô em seu trono elevado, soberano e soberbo, impaciente e irritadiço, tendo iniciado com os dizeres ordenados na lei: - Sob a luz de Un que as sombras que ora nos afligem sejam dissipadas e que nada além do que a justiça emane deste juízo, assim seja, ou se for a injustiça o resultado que a ira do povo nos carregue! – Palavras vazias, assim como o enorme salão da única construção em pedras da cidade de Zentiegu.
   O vazio do salão enfeitava de lindas e variadas cores as palavras dos acusadores. Mas nenhuma das infinitas tonalidades que existem, mesmo as mais raras, dos cantos mais longínquos de Dout, podem transformar uma mentira em verdade.
   - Os nobres chefes das tribos Forchao, Chakorante, Jogaten, Gibaloaten e Jagolanos nomearam, tempos atrás, Balgan dos Forchao como líder do conselho das tribos de Zentiegu – iniciou Gamo, como determinava a lei de Gayalo, a partir de sua posição de equilíbrio, solicitando que os acusadores formalizassem sua peça contra Jubyla – e como líder desse nobre conselho, que tem a parte de acusação neste juízo, passo a palavra à Balgan.
   - Nobres líderes das valorosas tribos de Zentiegu, que carregam no sangue toda a valentia de nossos antepassados. Que, dentre tantas almas de nossa cidade, são aqueles que de forma mais consistente souberam engrandecer as conquistas pretéritas. Que apontam para nossa gente o que deve ser o futuro. E que, certamente, se todas as almas de nossa cidade seguirem o que vós apontais é certo que o futuro será somente luz em nossos caminhos vindouros. Nobre Gamo, sumo sacerdote de Zentiegu, de tão grande presença, que tanto nos ajuda com a luz de seu saber. Nobre filho de Gamo, que tereis um futuro promissor. Vossa Majestade, Galdaô, que carrega o peso de todas as conquistas de nosso querido e saudoso Gayalo, e que mesmo com esse peso, tendeis conseguido superar o insuperável. Enfim, é com grande pesar que devo falar do mal que pretende fazer ao nosso futuro, ou melhor, ao futuro de Zentiegu, nossa nobre matriarca Jubyla.
   - Eu, Galdaô, conclamo vós, Gamo, a explicar-nos o grande mal que a matriarca Jubyla pretende fazer ao nosso povo.
   - Vossa Majestade, nobres de Zentiegu e venerável Jubyla, o grande mal do qual sou instado a relatar e explicar diz respeito ao peso que tem a liderança e sua palavra. Cabe aqui lembrar que a tradição afirma que a liderança é uma indicação de Un; com isso vós concordais venerável Jubyla?
   A velha matriarca, cansada pela idade, mas firme em seu propósito, pôs-se de pé e respondeu: - Eu, Vossa Majestade, nobres de Zentiegu e patriarca Gamo, conheço as tradições, é certo que Un escolhe os melhores para liderar, no entanto, liderança não implica infalibilidade.
   - O que quereis dizer com “não implica infalibilidade”? – Questionou de forma enérgica Galdaôgu, levantando-se de sua cadeira, gesticulando de forma ameaçadora.
   Gamogu aproximou-se do ouvido de seu velho pai e disse algo que ninguém pôde ouvir no burburinho que se instalou naquele breve momento até que o rei batesse com a ponta de seu bastão ao chão. – Silêncio! – Disse em voz potente o rei. – Venerável Gamo; siga!
   - Cara Jubyla, peço perdão pela exaltação de nosso nobre Galdaôgu, mas, retomando a questão, o que quereis dizer com a não infalibilidade dos nobres? – Gamo apresentava uma voz tremula e gestos inseguros. Aproximando-se de Jubyla, cerrando o cenho, e em voz baixa disse: - Penseis bem no que vais dizer!
   Jubyla apenas virou seus olhos para Gamo, de tal forma que ninguém era capaz de interpretar. Seria desafio? Seria desaprovação? Seria pena? – Se meus nobres patriotas não são capazes de perceber que também podem falhar em seus julgamentos, se, pior, não são dotados da humildade para reconhecer seus limites, só o que posso dizer é que ou agem na mais cega ignorância, ou na mais ignóbil má-fé.
   - Como ousais mulher! – Disse, exaltado, o rei.
   - Como podes ser tão audaciosa? – Inquiriu indignado Galdaôgu.
   Logo instaurou-se novo burburinho entre os homens poderosos, mas a velha mulher, sem recuar um passo sequer em sua fala, levantou-se e completou: - Ao que vejo pelas reações de meus nobres pares, posso escolher a segunda alternativa como resposta para a pergunta.
   Galdaô levantou-se e solicitou a seu lugar-tenente que chamasse os guardas, logo em seguida a mulher foi brutalmente espancada por todos, guardas e nobres, e levada de volta a sua cela, enquanto Gamo tentava declarar a interrupção do juízo. Terminava assim o primeiro dia do julgamento de Jubyla, sem nem ao menos a acusação ser formulada de forma concreta e consistente, o tempo para a liderança consumar seus interesses estava acabando.
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