"Fábulas
Ancestrais"
Número 1 -
Abnegação e submissão
Ali,
bem próximo ao rio Biongo Azul, nas terras altas de Zuinga, onde o clima é Sul,
e a umidade faz espessa a bruma, espreitam os espíritos da floresta de
Varlagaris.
Os espíritos que assustam as criaturas ao Sul surgem com a Lua. E a Lua é a
senhora dos nus, das copas altas a terra em suma os que aproveitam do convívio
em Varlagaris.
Os espíritos assustam aqueles que merecem. Os que relutam, e do grupo só tiram
vantagem. Essa é o ambiente da história de Pororos, o cão, e Jamoros, o gato.
- Pororos, o tolo, saltitante para lá, feliz para cá, com o rabo a abanar - era
Jamoros a profanar.
- Por que sou eu o tolo? - Indagou Pororos.
- Oras, como não seria um tolo aquele que vive pelos outros? Que legado deixa o
abnegado? O altruísta não é um tipo de artista?
- Por que o altruísta é um artista? – Quis saber o cão Sulista.
- Porque o artista, em seu dia-a-dia sem propósito, só entrega ilusão e o
altruísta, em seu dia-a-dia abnegado, só recebe ilusão. O primeiro engana
porque é pago, o segundo paga por ser enganado.
- Tu Jamoros, ao confundir abnegação, que só pode vir da retidão, com
submissão, que vem da vontade que reprime, demonstra ser o gato que todos dizem
ser infame. É difícil explicar o prazer de servir ao próximo a alguém que é escravo
de si ao máximo.
- Sou escravo? – Pôs-se a rir Jamoros - Pois afirmo que sou livre. Livre para
vir e sair daqui quando bem quiser e pegar o que desejar na hora que bem me
apuser. Já tu deves obedecer. Obedecer aos horários, obedecer aos chefes, obedecer
aos "espíritos". O que é essa liberdade que limita suas vontades?
- Não fiquemos nesse diálogo infindável seu diabo incansável, pois eternos as
regras, os horários e os chefes não são e nem impostos, pois quando as vontades
desequilibram os que são comuns soçobram e novidades do coletivo emanam. Isto
posto, tenho um desafio para ti.
- Um desafio? – Disse Jamoros a coçar o focinho e ajeitar os bigodes - Hum,
faça!
- Próximo é o inverno Jamoros, acumular mantimentos, eu e todos os
"tolos", é o que nos pusemos a fazer. Superar o tempo requer tempo.
Eu o desafio, em nome da liberdade que apregoas ser a verdade, a fazer no frio
o mesmo que muitos, mas sozinho.
- Sou mais que um chefe, sei enganar, tenho malícia e faço com que outros me
sirvam.
- Não em Varlagaris, aqui os espíritos já informaram tua fama de vigarice!
Jamoros partiu, mantendo a soberba, tomando Pororos por palerma, mas afirmando
que o desafio assentiu. O cão, ao final, conseguiu os mantimentos reunir.
Naquele inverno, muitos amigos pereceram, pois, aquele frio os espíritos
recrudesceram. A essência do grupo ao tempo superou, pois, a abnegação do cão e
de outros como ele imperou.
Sobre Jamoros, até os dias de hoje, nenhuma notícia chegou. Os milênios
passaram e ninguém sobre suas histórias soube contar, ou afirmar se enganar
conseguiu, sua forma aproveitadora e maliciosa de relacionar.
Hoje, o gato é sombra, muitos que vagam pela floresta de Varlagaris lembram. O
espírito de Jamoros é a sombra que traz o inverno aos povos.
E para os que conheceram o gato de contradições ficou a maior de todas as
lições: sermos abnegados para com a sociedade, não nos torna tolos ou fracos,
ao contrário, é o itinerário de maior sobriedade para a construção da própria
individualidade.