Bacurau


O Brasil era outro em 2008. Lula era presidente, tínhamos nossos problemas habituais, porém o país nadava de braçada em termos econômicos. Lembro-me claramente do dia em que, com uns tostões na carteira, decidi comprar aquele DVD pirata na banquinha perto de casa. Entre vários títulos, o vendedor me indicou um lançamento nacional, e eu, meio reticente, decidi levar o filme junto com Indiana Jones e a Caveira de Cristal. Um tal de Tropa de Elite.

Nem preciso dizer que me amarrei muito mais na produção do José Padilha do que no sacrilégio cometido pela dupla Spielberg/George Lucas. Porém, uma fenômeno estranho ocorreu logo depois: aquele filme que parecia ter sido feito para um público restrito ganhou proporções avassaladoras.

Algumas semanas depois, vi colegas de faculdade replicando falas inteiras em um tom jocoso ou refletindo sobre certas mensagens passadas pelo roteiro, que trazia a visão do Batalhão do BOPE, até então liderado pelo Capitão Nascimento (Wagner Moura), sobre a guerra contra o tráfico, a corrupção policial, e até sobre uma certa anuência da classe média esclarecida com os criminosos.

Era um sucesso involuntário que se fez no boca a boca, mesmo que não tenha garantido o rendimento merecido aos produtores. 3 anos depois, eis que é lançado Tropa de Elite 2, que surfou na ótima recepção do primeiro longa, permanecendo por um breve período encabeçando a lista dos filmes mais assistidos de todos os tempos.

Passado alguns anos, o fenômeno TROPA ainda é discutido tanto como um grande exemplo do fenômeno da inclusão digital quanto pela mensagem que a obra tenta passar, tendo inclusive algumas análises um tanto quanto deturpadas. 

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Agora, em 2019, o momento é outro. O cinema nacional passa por uma série de ataques encabeçados pela atual gestão, que não só está desmantelando a Ancine como também usa do pouco que resta do órgão para fazer uma cruzada ideológica contra seus críticos.

O momento é bastante desolador pra alguns: retirada de direitos, a manutenção do status quo, o Estado sendo aparelhado para fins espúrios, o recrudescimento de pautas conservadoras e nenhuma melhora nos indicadores econômicos. Um cenário bem diferente do Brasil de 2008.

Eis que emerge disso tudo Bacurau, filme dirigido por Kleber Mendonça Filho em parceria com Juliano Dornelles, que traz para a nossa época uma temática diferente, porém tão provocativa quanto a da película do Padilha: diante de tanto absurdo que nos cerca, é preciso resistir.

O longa nos apresenta a cidade fictícia de Bacurau, que fica no oeste de Pernambuco, em um futuro não tão muito distante. Os moradores são surpreendidos por uma série de acontecimentos que impactam diretamente suas rotinas. Primeiramente, a morte da moradora mais antiga, que representa o fim de uma época que não voltará jamais. Em seguida, são afrontados pela presença de estrangeiros que pretendem promover um safári no sertão, tendo como alvos os próprios moradores, que precisam se armar e resistir bravamente.

Não é muito difícil encontrar referências a títulos norte-americanos de invasão, como o Assalto ao 13° DP de John Carpenter, Uma Noite de Crime, e até os Westerns das décadas de 60 a 70. Porém, a grande sacada de Bacurau é situar a trama no nordeste brasileiro, e extrair o máximo possível de reflexões sobre o Brasil atual.

O pequeno vilarejo é o símbolo de um país dividido, em que uma parcela da população ainda não possui acesso a bens vitais como saneamento, energia e segurança pública. Com a ausência do Estado, essas pessoas se veem obrigadas a agir por conta própria para sobreviverem. E é disso que o filme trata: sobrevivência.

Claro que tudo isso embalado em um longa que passeia livremente em vários gêneros cinematográficos, provocando risos, aflições e até comemorações em momentos verdadeiramente libertadores. Por mais que os americanos sejam tratados de maneira unidimensional, nos remetendo aos sulistas reacionários e rednecks daquele país, ainda assim é delicioso ver um povo, até então visto como debilitado e ignorante, reagindo com todas as forças.

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Mas, como nem tudo no filme são flores, Bacurau corre o risco de ter sua mensagem final mal interpretada por parte dos espectadores, assim como foi o Tropa de Padilha. Alguns críticos enxergam o longa como uma exaltação a cultura da barbárie, a defesa irrestrita do banditismo e até uma leitura infantil sobre a atual conjuntura por parte de uma ala progressista cada vez mais infantilizada e carente de exemplos.

Em uma país que sempre foi dividido, mas que só agora mostra as suas rachaduras mais profundas, é natural as mais variadas interpretações que o longa vai provocar. Prefiro ficar com a imagem final dos moradores de Bacurau, que diante da barbárie, terminam tristes e desolados, como se tivessem consciência do trágico destino que os aguardam. Mas que seguirão firmes e fortes, porque se tiverem que cair então cairão de maneira honrada. Que o longa, e o Brasil de 2019, resistam bravamente.